"A crise financeira que eclodiu com a intensidade de um furacão tropical nas últimas semanas gerou um estado de grande incerteza em relação ao futuro da ordem global. Ao expor a fragilidade do sistema monetário internacional e os precários fundamentos que sustentam a globalização dos negócios, a crise pôs por terra todos os parâmetros que balizavam os cálculos capitalistas, deixando o mundo sob a ameaça de uma depressão global sem precedentes.
Não foi por falta de aviso. Na história do capitalismo, existem inúmeros exemplos de euforias especulativas que terminaram em pânico geral. Como a marcha insensata dos acontecimentos não foi detida, a febre especulativa contaminou todos os mercados, multiplicando de maneira descabida a valorização do capital fictício e estimulando uma monumental sobre-acumulação de investimentos em escala global.
Em relação às inúmeras turbulências que marcaram a conturbada trajetória das finanças internacionais na era neoliberal, há pelo menos três mudanças significativas no caráter da crise atual, todas convergindo para a configuração de um fenômeno estrutural extraordinariamente complexo, cujo desdobramento é imprevisível.
Em primeiro lugar, a profundidade e a extensão dos desequilíbrios financeiros que precisam ser digeridos superam em tudo a hecatombe que desarticulou o sistema monetário internacional em 1929. A estreita integração do sistema financeiro internacional transformou a crise norte-americana em uma crise global incontornável. Como os sistemas financeiros nacionais estão todos interconectados, não há como conter o processo de disseminação da crise sem subverter os alicerces da ordem econômica internacional montada nas últimas quatro décadas.
Em segundo lugar, a socialização das forças produtivas gerou uma complexa teia de relações comerciais e produtivas que bloqueia a possibilidade de saídas “nacionais” para a crise global. Enganam-se, portanto, os que imaginam que é possível passar incólume pelo terremoto econômico que abala o sistema capitalista mundial. Iludem-se igualmente os que apostam na possibilidade de um retorno a Keynes uma vez que seu arcabouço de política econômica pressupunha um regime central de acumulação hoje não mais possível.
Por fim, a impotência do poder político para enfrentar a situação não permite que se vislumbre uma solução rápida e indolor para a crise. A superação da crise requer uma ação coordenada, de caráter transnacional, envolvendo todas as dimensões da vida econômica - a financeira, a monetária, a comercial e a produtiva -, cuja possibilidade de concretização até o momento sequer foi cogitada.
Por enquanto, os Estados desenvolvidos têm se restringido a uma atuação reativa, sempre atrás dos acontecimentos, comandada pela histeria dos “mercados”. Prisioneiras dos interesses do capital financeiro, as autoridades econômicas têm se restringido a administrar a crise, na vã suposição de que, após um período de fortes turbulências, a intervenção saneadora no sistema financeiro fará os mercados voltarem à normalidade.
Os que confundem a estatização do sistema financeiro em curso com a volta da regulação do capital, tomam a nuvem por Juno, pois não é o Estado que está comandando o capital financeiro, mas exatamente o contrário, o capital financeiro que está comandando o Estado. Na realidade, a economia mundial está a léguas de qualquer tipo de ação “reguladora” capaz de submeter o capital financeiro a uma racionalidade substantiva que leve minimamente em conta os interesses estratégicos da coletividade – a causa última dos problemas que geraram a crise. Em nome da necessidade de prevenir uma crise sistêmica de efeitos potenciais catastróficos, os Estados dos países capitalistas estão patrocinando o maior ataque à economia popular de que se tem noticia na história universal, sem que nada garanta, diga-se de passagem, que o cataclismo será evitado.
Não há o menor vestígio de luz no fim do túnel. A experiência da crise do liberalismo, que desarticulou a divisão internacional do trabalho que funcionava em torno da economia inglesa, sugere que a superação de crises desta envergadura demora décadas e envolve incomensurável sacrifício humano.
Para finalizar, uma última observação. A gravidade da crise não significa que a sobrevivência do capitalismo esteja em questão. Enquanto não houver uma alternativa ao regime do capital, não há dúvida de que, de uma ou de outra maneira, levando mais tempo menos tempo, as condições para a retomada da acumulação de capital serão restauradas. A virulência da crise, a magnitude do capital sobre-acumulado que precisa ser queimado, bem como a profundidade e a complexidade das mudanças que precisam ocorrer para que as condições para a reprodução ampliada do capital sejam restabelecidas sinalizam que, mais do que nunca, o desenvolvimento capitalista deve vir acompanhado de um brutal aprofundamento e generalização da barbárie."
Plínio de Arruda Sampaio Jr., economista e professor do IE/Unicamp